— Beco do Mota; Milton Nascimento, Fernando Brant.
Cheio de lembranças, é assim que fiquei. Povoado por memórias atraídas e aguçadas por uma tarefa de faculdade, pela necessidade de compor, como estudante de história, o meu primeiro memorial. Sendo assim, desde a terça-feira à noite — dia da aula que me deixou tal incumbência — acompanho com maior atenção o vai e vem das imagens que perambulam por aqui, nos porões da minha mente; lembranças... “Diamantina é o Beco do Mota, Minas é o beco do Mota”, a voz do Bituca, o calor do fogão à lenha e o fulgor nos olhos de meu avô. Ele tinha esse hábito, o vô. Gostava de me colocar para escutar MPB e, enquanto tomava uma pinga, observava-me. Em alguns momentos, levantava as sobrancelhas: “atenção Dé, escuta bem essa frase” falava, bastante calmo. Com o fim da música, conduzia-me pela interpretação da letra; com enorme paciência — coisa de avô babão, encantado com os netos que tem — procurava me contar as circunstâncias por detrás da canção, tinha uma enorme satisfação em alimentar o meu repertório musical e apontar-me a poesia de Minas, de Milton, Brant, de Beto, de Paulinho, de Lô e tantos outros. Era também durante essas conversas que narrava alguns dos episódios de sua própria vida e dos acontecimentos de nossa família; os Mota.
Como ele gostava desse sobrenome; enchia a boca para dize-lo: “Sou Mota. Somos Mota, somos de Minas”. Imagine a minha surpresa ao ouvir o Milton cantar o nosso nome. Naquelas noites com o vô eu ia aprendendo sobre a história da família e das nossas raízes mineiras, regionalistas. Começava a entender que, de certa maneira, a história de minha casa não começava com meus pais e comigo; outros haviam vivido e morrido antes de mim. Vieram de longe, construíram vida no interior das Minas, enriqueceram e também quebraram, fizeram nome na cidade de Minas Novas. Foi também em uma dessas noites que me mostrou, bem como explicou o retrato na parede de seu quarto. Imagem em preto e branco, moldura oval, nela os meus bisavôs olham meio de lado para o horizonte, como se a visão estivesse perdida no tempo; rostos muitos sérios, sóbrios. Por coisas assim, as noites com o vô eram fascinantes. Agora, elas são memórias, porque o velho de cabeça branca não está mais aqui: “Um dia eu vou faltar, meu filho. Vou embora. E então a vida vai te colocar no meu lugar, e você, um dia, também terá os seus netos. Se hoje sou seu espelho, amanhã será o seu dia de dar o exemplo, e você ensinará para eles as músicas que aprendeu junto comigo”, dizia. Mas nesses momentos, em que as conversas enveredavam por temas assim, algo mais filosófico, como a sua própria condição de finitude, não era o Milton quem cantava, o som que embalava o papo dessas noites ficava a cargo de João Nogueira:
“(...)Num dia de tristeza me faltou o velho; e falta lhe confesso que ainda hoje faz; E me abracei na bola e pensei ser um dia; um craque da pelota ao me tornar rapaz; um dia chutei mal e machuquei o dedo; e sem ter mais o velho para tirar o medo; foi mas uma vontade que ficou para trás. Eh, vida atoa; vai no tempo, vai (...) E o meu medo maior é o espelho se quebrar.
— Espelho; João Nogueira.
Assim comecei a descobrir a história, ela se fez presente, antes mesmo de eu aprender a ler, através das narrativas de meu avô acerca de nossa família, do nosso sobrenome. Nas noites despretensiosas em que ele passava horas colocando discos no rádio, empenhado em fazer o neto compreender aquilo que a letra procurava dizer. Meu avô Mota foi, portanto, uma fonte, foi quem me ajudou a perceber a duração, o correr interminável dos dias, da vida atoa que vai no tempo. Por outro lado, talvez a casa de nossos avós ainda guarde um outro efeito. Para dizer de outro modo, quando o velho contava dos parentes antigos, bem como dizia da própria finitude, abria espaço para que eu concebesse o passar do tempo, a sucessão das gerações. Contudo, aquele retrato oval, o qual já mencionei, única recordação restante dos pais de meu avô funcionava também como um fragmento tangível do passado. Não sei se me fiz compreender, mas a ideia é a seguinte: a casa de nossos avós não guarda vestígios do passado? Sua decoração, sua disposição, seus adornos; quer dizer, as paredes repletas de fotos — muitas vezes antiquíssimas —, as impressões espalhadas pelos móveis, que dão conta de formaturas, de batizados e de aniversários — muitas vezes dos filhos, mas com maior frequência dos netos —, não seriam também fontes? Sobre tal perspectiva, um bom observador poderia encontrar um registro considerável da história de uma família ao caminhar pela sala de uma avó. Estou certo de que, se detalhista, conseguiria compor um bom panorama a partir dos vestígios espalhados pelos cômodos. Pois bem, mais o que isso tem que ver com a minha descoberta da história?
No ano de 2019 resolvi manter uma espécie de diário, um caderninho de anotações, melhor dizendo. Nada original, devo comentar, mas é que eu começara a sentir uma verve intelectual a animar meu espírito. Sendo assim, como muitos dos pensadores que me serviam de exemplo mantinham esse hábito, decidi seguir o modelo. Com o passar do tempo, tomei gosto, e por meio dessa prática descobri o prazer de acessar “Andrés” do passado, de resgatar trechos de elocubrações em datas específicas. Ora, o rapaz que escreveu em 2019 não é o mesmo que rabiscou em 2020, também já é outro, agora em 2023. Ademais, para além de facilitar os caminhos da minha memória, os tais caderninhos funcionam como uma auto pesquisa. Por eles consigo espiar algo acerca do fluxo do meu pensamento, e das transformações que ocorrem na maneira como eu enxergo e como eu penso o mundo. Tendo isso considerado, firmo que componho o meu memorial desde 2019, por conta dele sou, desde já, um pouco pesquisador — ainda que o meu objeto de pesquisa seja eu mesmo —, um pouco intelectual e, por que não dizer, um pouco historiador; ainda que diletante.
"Se por historiador se designa uma profissão, só me tornei historiador tardiamente e por fases. O mesmo não acontece se o termo qualificar uma orientação da curiosidade intelectual; parece-me que sempre o fui.”
— René Remond
Bem, ainda não sou historiador, mas me considero já iniciado no ofício, um aprendiz, tateando na arte de recompor o passado. Porém, assim como para Remond, se o termo qualificar uma orientação da curiosidade intelectual; parece-me que sempre o fui, desde quando ouvia extasiado as narrações do vô; desde quando examinava arrebatado o retrato oval dos seus pais, em preto e branco, e por meio dele imaginava o passado. Como foi que descobri a história em minha vida? Resposta: acaso. Ele e sua intrincada reunião de circunstâncias e coincidências. Vicissitudes sobre as quais — no meu ponto de vista — tenho pouquíssima autonomia. Quer dizer, uma coisa é meu avô narrar a história de nossa família, colocar músicas, mostrar retratos. Outra, é eu me interessar por tudo isso. Por que o meu interesse? Não sei, talvez uma suposta orientação da curiosidade intelectual, para além do meu controle; talvez uma definição inata, feita pelo Cronida — que as nuvens cumula e os raios trovoa — no momento em que colocava ordem no caos. Vai ver, em sua arrumação cósmica, colocou o André ao lado da história e determinou o seu caminho para dentro de uma sala da aula. Como saber?
Aproveito a menção ao acaso para retomar a ideia da casa dos avós como receptáculos do passado. Um dia, passeando pela sala — agora da avó —, reparei em uma foto minha. Devia contar com no máximo seis anos. Eu sorria e orgulhoso estufava o peito, trajava uma armadura — de plástico; mas para mim, do mais valioso e poderoso metal —. Na mão esquerda — sou canhoto —, a espada empunhada, pronta para a peleja. Nada como uma fotografia e uma tarefa de faculdade para lubrificar os mecanismos da memória. Agora lembro bem, eu chamava aquilo de “fantasia de Hércules”, mas não sei sua origem. Presente de aniversário ou de natal? de quem? Não sei, isso a memória não permitiu guardar, o importante é que eu a adorava. A fotografia ainda instigou outras memórias: eu tinha uma coleção de espadas e brincar com elas estava entre minhas predileções. Por conta disso, durante a infância fui Hércules, fui Artur, por tantas vezes fui César a comandar a Legião e a defender Roma dos “invasores” Bárbaros. Novamente a disposição intelectual, o acaso fora do meu controle.
Por outro lado, se as narrações do vô e as brincadeiras de criança desvendam as origens da minha inclinação para a história, o mesmo não pode ser dito dos livros didáticos. Meu péssimo percurso escolar impede que eu tenha qualquer lembrança boa para com esse tipo de impressão. Quando vasculho aqui os porões, a imagem que me vem com maior grau de nitidez é a cara de raiva de minha mãe, que com um esforço hercúleo fazia o que podia para me manter sentado, copiando os trechos do livro que davam conta do dever de casa indicado pelo professor. De certo, foi já muito depois do período escolar que passei a valorizar os livros e, mesmo assim, os romances tiveram um papel bastante maior que os didáticos para a minha descoberta da história.
“Pois a história tece com teias de aranha a rede indefectível do destino; em seu mecanismo maravilhosamente construído, uma simples e pequena roda motriz põem em movimento forças terríveis.”
— Retrato de uma mulher comum; Stefan Zweig.
Pois a história tece com teias de aranha a rede indefectível do destino (...); pois bem, ainda quando criança — não sei ao certo se antes ou depois de ganhar a tal fantasia de Hércules —, assisti a um documentário sobre Roma, e conduzido pela voz do narrador — bastante característica para documentários de história — ouvi pela primeira vez a fascinante narrativa dos imperadores, dos césares romanos. Pouco depois, um tio contou-me sobre Ícaro, o jovem rapaz que pecou pela desmedida, e tendo isso feito, pagou com a morte ao voar perto demais do sol. Notou? Mais uma vez os sussurros do acaso, acontecimentos triviais, fora do meu controle: primeiro Grécia e Roma, depois mitologia grega, mais tarde os filmes Gladiador e Tróia; um avô dedicado que faz o neto interpretar canções e ouvir as tradições da família, um tio que narra a desventura do filho de Dédalo, uma televisão ligada que prende a atenção de um menino ao representar as conquistas de Roma. Já adulto, fora da escola, os romances históricos, um clássico aqui e outro ali, bons professores — pelos cursinhos da vida —, uma pretensa verve intelectual e, por fim, a descoberta pelo gosto de tentar remontar o passado. Juntando tudo isso, creio ter delimitado um pouco do caldo responsável por fazer com que eu criasse gosto pela história; resumidamente, foi por esses caminhos que eu descobri e vocação da minha vida.
Penso que o caminho seja mesmo por ai. Quem sabe o vô tenha razão, talvez ele, ao me contar do passado, tenha também entrevisto o futuro, “um dia a vida vai te colocar no meu lugar”, e então será a minha vez de apresentar a história aos meus filhos e aos meus netos, em noites despretensiosas e com um copinho de cachaça mineira para amenizar o frio; eh, vida atoa. Vai no tempo, vai. Mas que saudade, mas eu sei que lá no céu o velho tem vaidade e orgulho de seu filho ser igual seu pai (...). E o meu medo maior é o espelho se quebrar.