domingo, 17 de outubro de 2010

Crônicas do Mato. # 2 : "Lá tem..."

Os traços fonéticos do dialeto mineiro são bem conhecidos e já mereceram o devido estudo. Cito dois, a título de curiosidade:
(1) Esboço de um Atlas Lingüístico de Minas Gerais;
(2) Projeto Mineirês – desenvolvido na UFMG entre os anos de 2007 a 2008 –, cujos resultados foram apresentados à comunidade acadêmica através de publicações de diversos tipos.

Mas os aspectos do nosso jeito de falar que mais me interessam agora são:
  • Permutação de "e" em "i" e de "o" em "u" quando são vogais curtas.
  • Aférese do "e" em palavras iniciadas por "es": esporte torna-se sportchi.
  • Apócope do "d" nos gerúndios: chovendo passa a ser chuvenu. Cantando passa a ser cantanu. Fazendo passa a ser fazenu. Tomate passa ser tumat' (com o "t" levemente sibilado).
  • Somente o artigo é flexionado no plural, à semelhança do caipira: os livros é dito us livru. Meus filhos se pronuncia meus filhu.
  • Contração freqüente de locuções: abra as asas passa a ser abrazaza.
  • Alguns ditongos passam a ser vogais longas: fio converte-se em fii, pouco é dito poco.
  • Algumas sílabas são fundidas em outras. -lho passa a ser i (filho ⇒ fii), -inho converte-se em -inh (pinho ⇒ pinh).

(...)


"Cininh" é figura pacata de uma cidade do interior de Minas - no vale do Jequitinhonha - com pouco mais de 30 mil habitantes (estimativa de 2004 depois do último censo de 2000). Atualmente é segurança do BB onde pode ser visto diariamente - no horário comercial - trajando seu uniforme bege com o cassetete (isso mesmo. Escreve-se com o dígrafo “-ss” porque seu étimo (origem) é o francês “casse-tête”, literalmente “quebra-cabeça”) na cintura.
Felizmente não se tem notícia de nenhum roubo a banco por aquelas bandas e o tal instrumento permanece decorativo. Nunca foi usado, nem mesmo pra apartar os mais inflamados na fila do caixa pela insolação da pinga, muito comum naquela região. É sujeito tinhoso, leva no bico, negocia..."Bicaria" é sabedoria herdada por ali.
A propósito, Cininh vem de Alcino, nome de seu pai. Era de se esperar que virasse Alcininho...
Mas em Minas é Cininh "mesmm" e "kabô"!

Seu hobby predileto é fazer trilha de moto. Com ele mais uma dúzia de aficcionados e simpatizantes.
Há na cidade um grupo considerável de adeptos que vão dos mais abastados aos que só tem a moto. E mais, sem discriminação ou arrogância de quem quer que seja. Todos iguais. Socialismo jequitinhonhês de quem cresceu junto, dividindo os mesmos espaços das ruas, rios da cidade (ler Marx pra quê?).

Marcão, aglutinador e agitador da maioria dos eventos, marcou a trilha para um Sábado e planejou que o circuito terminasse na "roça" de Cininh a uns 25 Km da cidade. Encontraram-se no bar do Zé Balaio numa Sexta a tarde pra discutir o horário da saída, ponto de encontro, ordem da comitiva e, principalmente, como terminariam a via crucis na roça de Cininh. Sugestões então pipocaram:
-Tá bom de levar uma "meia" de pinga pra gente tomar lá, disse Marcão.
Cininh pontuou, devagar e mineiramente:
- Leva não moço... Lá tem...
Dedeço irrompeu então com a proposta do "tira-gosto":
- Então vamos levar uns dois frangos caipiras. Ai a gente faz lá.
Cininh de novo emendou, tranquilo, quase com sono:
- Leva não moço, lá tem...
- A gente leva então umas 2 caixas de cerveja, disse Johnny (seu nome "é" mesmo Johnny).
- Leva não moço... Lá tem - Disse Cininh mais uma vez.

Pareceu a todos tudo perfeito demais. Foi então que Marcão, que não perde viagem, espetou:
- Tá bom de a gente levar então é umas raparigas pra lá ...Pra gente ter o que "cunversá"...
Silêncio.
Todos se entreolharam com um ar atônico e buscaram Cininh, antecipando sua reação indignada.
Esse levantou-se da mesa e pôs-se a coçar a barba rala, enquanto caminhava e já divisava o morro da Contagem, da porta do bar.
Um hiato de uns 40 segundos - que pareceram infinitos - sem resposta.

Ele voltou então, devagar e ainda com um olhar distante, coçando a barba com movimentos preguiçosos.
Aproximando-se, curvou o tronco para o centro da mesa e sussurrou - quase soletrando - ao mesmo tempo em que fitava um por um com um movimento lento de cabeça:

- Leva não moço... Lá tem...
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(1) RIBEIRO, José; Mário Roberto L. Zágari ; José Passini ; Antonio Pereira Gaio. Esboço de um atlas lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro: FCRB, 1977.

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