O entregador de leite badalava as madrugadas da cidade com o som cadenciado, oito cascos vagarosos tamborilando as lapas e estacando vez ou outra em frente a uma casa para deixar as garrafas de leite na porta.
No final da rota o bar de Raul Marcolino, e como fazia todos os dias, o entregador estacionou e desceu do cavalo bem em frente à porta grande de aço, do lado direito, amarrando a mula de carga ao poste junto da entrada, apanhando dois litros de leite no alforje e levando-os para Darci, atrás do balcão.
Na frente do bar, uns 10 metros afastado da rua, havia uma área cimentada inclinada que terminava na rua e servia de estacionamento para os cavalos, mulas e aos poucos carros. O bar ficava em frente à praça Dr. Badaró, na saída para a Chapada e a uns 200m da ponte do saudoso rio Bonsucesso.
Raul Marcolino vinha chegando, descendo a Getúlio Vargas no horário de costume tragando seu pito de palha, impassível, soltando suas baforadas desrespeitosas pelo ar.
Distraído e inatingível, passou por detrás da mula de leite como se ela não estivesse ali. Talvez por mulice genética ou mero espasmo muscular, a mula soltou um coice seco, surpreendendo Raul em cheio na altura do peito, lançando-o à rua feito uma bola.
Por alguns segundos o mundo pareceu parar à espera da reação do monstro a tão desavisada agressão, fazendo da praça um silêncio de olhares e respirações no aguardo do desdobramento da peleja.
Recompondo-se, já irado sob o olhar atônito de quem presenciara a cena, arfando feito touro bravo, Marcolino não se deu ao trabalho de sacudir a poeira das roupas, partiu para cima do animal preso pelo arreio ao poste de madeira no canto direito do estacionamento, estacando, subitamente, na metade do caminho para inclinar-se e apanhar o cigarro de palha, ainda aceso.
Sugou-o profundamente avivando a brasa bem perto dos lábios, para depois baforar ruidoso e retomar a empreitada. Uma locomotiva humana tracionando e soltando fumaça pelas ventas.
Ganhou velocidade a ponto de chegar até a mula com mais três passos e, sem cerimônia, disparou uma série desordenada de pontapés e socos no lombo da pobre, balbuciando insultos e palavrões ininteligíveis por entre os dentes, como sempre.
Após uma sessão exaustiva de golpes, que deixou a coitada arqueada porque presa ao arreio amarrado ao poste, as patas dianteiras dobradas nos joelhos e as traseiras totalmente debruçadas no chão, o entregador só apertava a boca com as mãos num gesto de desespero e pena.
Raul recompôs-se, só então sacudindo a poeira e aprumando a roupa com todo o cuidado e traquejo, enquanto a mula urinava seu medo mal cheiroso na porta do bar. Meticuloso, arrumou a camisa novamente e antes de qualquer outra coisa retirou do bolso direito uma folha de palha, despejando o fumo e selando o "paioso" com a saliva logo em seguida.
Acendeu o cigarro, tragou até que a brasa ficasse bem viva, voltando-se para a praça buscando a platéia e, embora falasse para a mula - talvez ela até o entendesse, baforava, ainda com a respiração acelerada pela briga:
- Cê pode até ser mais mula que eu... mas mais IGNORANTE cê num é não!!!
Confirmou depois com um giro de cabeça se cada espectador vira seu desagravo.
Tinha uma reputação bruta a zelar. Essa ninguém tiraria dele. Nem gente nem bicho...nem o diabo que o parta.
Marcolino dos marimbondo cavalo ou marimbondo caçador (aqueles que andam de "a pé"), sempre andava com a camisa jogada no ombro (igual Nisca de Maria Zá Gaia), mas só se estivesse fazendo aquele frio de rachar a "beiça"...
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