Mirou um relógio de pulso cuja "simplicidade e sofisticação", aliada ao arrojo e requinte do material, obrigou-o a entrar na loja. De fato era uma peça única.
Era estranho ser atraído por relógios, todavia... uma vez que era absolutamente avesso a compromissos e horários, os quais considerava marcos inflexíveis no vagar de sua vida, instigando-o sempre a padecer da inevitabilidade das horas como um mero coadjuvante e escravo do pêndulo. Não aceitava mais.
Porém, não amava somente os de pulso, mas também os cucos, os de bolso, os de sol, ampulhetas, as clássicas clepsidras, talvez para desafiá-los com sua teimosia acrônica e decidida, ao mesmo tempo em que insultava com intransigência o canto dos minutos, horas, seu tic-tac infinito, com um olhar de colecionador. Naqueles momentos tinha a sensação de que possuia o tempo, e não o contrário. Subvertia Cronos a seu seviçal, nas paredes, estantes e armários de casa. Tinha perto de 300 relógios, dos mais variados, até uma miniatura de um de sol, horizontal, que fizera ele mesmo: um gnômon cortado como um triângulo retângulo com um dos ângulos agudos com a medida da latitude de casa, 25º25'45.70"S, sobre uma placa plana de mármore cuidadosamente entalhada em um círculo de 30 cm de raio. A extremidade fora trabalhada para causar a impressão de uma peça antiga, retirada da rocha sem a tecnologia das máquinas de corte modernas, esculpida a mão, tal qual os mármores de Elgin, que tanto o fascinaram, outrora.O comprimento da hipotenusa do triângulo ligeiramente menor que o raio do mostrador.
O fetiche não se reduzia apenas a materializar o tempo, torná-lo palpável e sob o controle de suas mãos, mas também incluia a arte das peças. O material, cores, design, sutileza dos entalhes, tudo, enfim.
Se Cronos, filho de Urano, o Céu estrelado, e Gaia, a Terra, tornara-se a pedido de sua mãe o senhor do céu castrando o pai com um golpe de foice, naquela alcova de 16m² o Titã não tinha poder algum.
Destronado por seu filho Zeus uma vez, era-o novamente, agora por José, um humilde funcionário público de 55 anos cujo único amor o tempo apagara 25 anos atrás, e pelo qual resolveu se vingar, subjugando-o por entre seus dedos, fazendo-o parar, extendendo-o, sem mudanças, em momentos, sempre os mesmos, quase ao infinito.
Lembrava da paixão que o consumiu instântaneamente, por 10 anos. Lembrava-se também de como nos últimos 2 anos dele e Dora, algo parecia ter desvanecido, apagado, como se seu amor estivesse a ser implodido pedra por pedra pelo tambor dos meses. Insistia em buscar as lembranças do início, trazê-las de volta, apresentá-las a Dora como prova de que poderiam ser de novo o que foram. Tudo em vão. Eram apenas lembranças, não mais os momentos que viveram, impossíveis de reconstruir ou reviver.
Eram os anos tristes que mais frequentemente pulsavam de sua memória. Cronos a engolir os próprios filhos deixando-os foscos, sem vida.
Começou logo depois da separação, sua compra do tempo. Um após o outro foram se juntando ao acervo agora variado pelos 25 anos de busca, entulhados em seu quarto como o tambor da decadência e do vazio.
Chegava do trabalho e peregrinava por seus 300, parando-os, por vezes, um a um.
Deitava-se na cama e contemplava seu feito, depois. O tempo parara, enfim, ao toque e vontade de suas mãos. Cronos subjugado, não mais o martelo das horas a extrair-lhe a vitalidade e o amor.
Porém, não havia mais Dora. Eram só ele e as lembranças... que agora ocupavam o quarto e bailavam à sua frente como num filme mudo.
Fizera então de Cronos seu eterno escravo, a vingança por ter-lhe levado Dora, ali, preso e controlado em sua miríade de marcadores, um segundo Tártaro ao Titã, o quarto de 16m² de um funcionário público... José, como tantos outros. O tempo parava...
Mas ele também um escravo, porque as lembranças lhe doiam.
Voltava, então, anti-horário, religava todos, uma a um, só para ouvir-lhes novamente o derradeiro som do inevitável, esconder-se de novo da dor, da saudade... sua carapaça temporal, seu Tártaro onde a Cronos se juntava, como filho, amigo... irmão.
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Imagem: A mutilação de Urano por Saturno, de Giorgio Vasari e Cristofano Gherardi.
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