Por um desses insights que aparecem como que por obra de fadas, duendes, ou pela mera consequência da combustão dos miolos depois de anos - "como com o milho da pipoca que divisei pela fresta da tampa quando criança, um grão amarelo transformado subitamente, após o estalido seguido do salto, naquela cabeleira louca, branca" - decidi que andaria o caminho. Não cabia mais em mim mesmo, no bairro, cidade, país, estático... A incinerante compulsão finalmente consumira as raízes e sentia-me como um balão de hélio, solto.
Não pensei em prazos nem como subsistiria durante todo o percurso, apenas juntei alguns poucos itens essenciais na mochila e sai, sem aviso. Tive o cuidado de parar no primeiro ATM para retirar o que a máquina permitisse, minha provisão inicial. O restante, bem... teria de me virar ao longo do caminho.
Caminhei da Grand-Place e passei pelo Menneke Pis uma vez mais, antes de tocar em direção à Bruxelles-Central station. De lá à Bruxelles-Midi e depois Paris.
Cheguei em Paris quase duas horas depois. Tinha fome, então da estação Gare du Nord tomei o metrô e fui aproveitar Paris por algumas horas. Linha 4 até a St-Denis e de lá a linha 9, até saltar na estação Trocadero. Atravessei a pé a Pont d'léna até a Eiffel, impoluta e emocionante não importando quantas vezes já a tivesse visto. Depois do Champ de Mars a École Militaire, de onde circundei pela esquerda até o Museu dos Inválidos quando toquei novamente em direção ao Sena pela esplanada. Tomei a direita na Voie Expresse Rive Gauche e caminhei até o Musée d'Orsay, ladeando o rio, de onde fui ao café no terceiro piso após uma rápida olhadela em Monet e numa exposição itinerante de Rodin. Desjejum com croissant, latte e de quebra um pedaço de tiramisù degustado do terraço com vista para o Sena, para o Louvre. Depois da insólita sobremesa durante o café da manhã, por que não vinho tinto? Tomei um Alicante Bouschet 2004 sei lá de qual vinícola. Gastei mais uma hora no terraço degustando o vinho, a vida, Paris do terraço, a antiga estação agora o Museu, tudo filtrado em meus pulmões naquele ar frio de Fevereiro, do terraço, depurado pelo Alicante que embora considerado pelos iniciados como casta inferior, para meu paladar e bolso remetia-me ao Alentejo, da França à Portugal pela viagem do buquê, da cor do tinto acentuado um pouco mais pelos raios tímidos da manhã vazando minha taça, do d'Orsay... no terraço.
Libertei-me então da ditadura sombria dos sentidos, da inibição, do medo, não sei bem se depois da terceira ou quarta taça.
Abri o mapa e decidi pelo caminho francês, St Jean-Pied-de-Port como ponto de partida. Viajaria para lá após minha efêmera reverência a Baco, naquele sarau individual no d'Orsay pela última vez.
"Irônico... festejei o Alentejo com um Alicante embora Baco tivesse sido o principal opositor dos heróis portugueses nos Lusíadas, de Camões."
A leve embriaguez dava-me mesmo a inconsequência libertária de misturar esquerda e direita, França com Portugal, Santiago de Compostela e a Estrada Real, Paris com Diamantina, tudo num átimo.
Decidi também que jamais escreveria um "Diário de um Mago" após a viagem. Menos por desejo e mais por incompetência. Afinal, nunca fizera ventar ou chover, não vira luzes azuladas como materialização de sentimentos, nunca tivera nem seguira mestres. Na verdade uns poucos, mas nenhum líder de seita ou confraria, igreja, partido. Ao invés disso, autores de grandes sertões, guaianãs, de crimes e castigos, de guerra e paz. Alguns grandes mentecaptos, como eu e o vinho. Tudo parte da divina comédia da qual éramos apenas atores vestindo máscaras, "como dissera Erasmo de Roterdã no Elogio da Loucura", ou consequências de reflexões de um século esquecido.
Peanuts...
Apenas livros. Ensinaram-me, todavia, uma outra forma de mágica: a palavra.
Outra decisão foi que o caminho terminaria onde tudo começara, na Definitiva, passando pela Estrada Real partindo da Serra do Cipó até Diamantina.
Veria de novo a terra vermelha, os pequis, pequizeiros, talvez não mais os marmelos nem os rios e córregos, mas eucaliptos das energéticas poluindo a visão por quilômetros, a despeito de uma boa quitanda ainda poder ser encontrada numa clareira, aqui e ali nas pequenas vendas de beira de estrada.
Do Caminho de Santiago ao Vale, a Estrada Real, meu caminho até a Definitiva, a estrada...
Aquela minha estrada.
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