quarta-feira, 30 de novembro de 2011

"Hoje não passa de um dia perdido no tempo... e grito!!!"

“Engraçado” como o tempo se encarrega de colocar à sua frente realidades insopitáveis, desagradáveis porque lógicas demais, indigestas ou duras como o fel, do qual gostaríamos de manter eterna distância.

A morte de muitos com quem caminhamos é uma delas.
Como uma equação matemática – de probabilidade -, prescreve-se que os mais velhos deverão ir primeiro.
Quando é alguém que amamos, recusamo-nos a pensar sobre isso, afastando sempre que próxima de nossa mira qualquer consideração sobre a finitude de nossos entes queridos, tanto quanto a nossa mesma.

Lembro-me de como tratava tal imbróglio quando criança. Ao invés de ruminá-lo, deglutí-lo tanto quanto possível - já que inevitável e natural -, simplesmente corria na direção oposta: apagava sistematicamente de minhas elucubrações diárias tudo que relativo à possibilidade da morte de meus pais. Doía demais.

Vejo com certa preocupação que meus filhos fazem o mesmo, hoje. Sempre que confrontados com algum desvario do pai que por ventura signifique risco ou redução da expectativa de vida, reagem com pânico e certa truculência. Não obstante, trata-se de prova inequívoca de amor e cuidado, embora nem assim eu cá tenha evitado algumas burrices homéricas, desafios à vida com a coragem suicida, homicida, dos bêbados ou loucos.
Cada estupidez que cometia - feito um bucéfalo desorientado -, refletia no espelho dos olhos de meus filhos o que eu mesmo não conseguia enxergar: o mundo sem o pai.

Ao escrever essas linhas, externo aqui o pavor que imagino eles sentem nessas ocasiões, até onde posso vislumbrar sua indignação todas as vezes que me repreendem acerca de uma de minhas muitas tolices, ainda.
E eis que hoje esse medo também me persegue. É meu pai que foge de mim, contra a minha vontade, contra a vontade dele. É tudo só mais um pouco dessa matemática louca da vida, inversamente proporcional, agravada pela tristeza da doença que sufoca a chama, transmuta o outrora forte e destemido num frágil e limitado espectro, de olhar opaco sobre um futuro vago e derradeiro. É a incapacidade da prospecção de nossa própria morte, da morte de quem amamos espreitando meu sono.

Nada mudará, eu sei.
Para os crentes e místicos de todo lugar, a fé e a crença são o lenitivo para a dor e o desespero.
E quanto aos céticos?
Outro dia, como não acontecia desde 2007 quando fui acometido por uma espiritualidade desconcertante diante de uma igreja gótica em Gent, na Bélgica, fui também impelido a entrar na Igreja da Paróquia Imaculado Coração de Maria em frente à praça Ouvidor Pardinho. Mas antes de consumar o desejo, voltou-me à mente a cena da Catedral Saint-Bavon em 2007, quando ao apanhar a vela ainda inebriado de espírito, fui abordado por um auxiliar da sacristia para que pagasse primeiro, o que subitamente arrancou-me de volta do transe, deixando-me novamente só.

Ainda acendi a vela, que me custou 1,50, acho. Porém, o sentimento que havia me tocado minutos antes se desfizera, antes mesmo que a chama dançasse malemolente ao sabor das correntes de ar na nave daquela catedral medieval ou eu arriscasse uma oração.

Aqui, onde ainda consigo ser claro, sincero, imune às armaduras e máscaras que vestimos todos os dias, suplico a quem “ouvir”… e principalmente puder:  fale comigo, dê-me um sinal, ainda que eu, um ponto obscuro do cosmo crivado de erros e defeitos que nem sei se poderei sanar algum dia, vendo meu pai como alguém que ainda merece, porque acertou mais que errou, seja quem clame agora para que ele permaneça.

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Imagem: Genter Altar, Altar des Mystischen Lammes, Haupttafel, Szene: Die Anbetung des mystischen Lammes - Hubert van Eyck

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