Levantou os olhos, viu-se refletido no espelho mas teve a sensação de não enxergar-se, opaco, silhueta difusa, face, cabelos, os olhos que não pareciam mais os dele.
Subjugado pela dor não enxergava mais como antes.
Algo literalmente mudara, secara, perdera a cor. Fizera digressões sobre a morte inúmeras vezes, mas não tratava-se agora de mais uma de suas elucubrações, mas da vicissitude mesma, companheira intrometida a segui-lo desde então até o fim de sua vida. A teoria sempre lhe caíra melhor, professor e pesquisador que era. A realidade das provas por certo nunca deixara-o à vontade, e agora tombava-o doente.
Com a perda, um daltonismo psicossomático, o olfato cego fizeram dele um homem de três sentidos, embora não atribuísse a si mesmo sentido algum naquele momento. Era agora também um homem de três dimensões, sem o espaço-tempo, malgrado sentisse como maldição a gravidade do buraco negro a sugar-lhe as cores do mundo. Não encontrou lenitivo em suas crenças, muito menos na falta delas.
Saiu do banheiro e seguiu o cortejo até a cova, aquele ínfimo retângulo numa colina onde a passagem já determinava pisotear nomes, histórias, passados. Estacou numa daquelas lápides para verificar o derradeiro, 'Maria Aparecida Carvalho', *12.01.1982, ƚ 06.08.2012. Apertou os olhos em desespero e rogou em silêncio ser tirado dali, resgatado, transmutado, acordado em outro lugar onde pudesse ouvir sua voz de novo, seu epíteto acolhedor, "sim moço...". Nada... estava mesmo ali a cruzar o Aqueronte. Ao abrir os olhos o cinza asfixiante das gentes, do choro, da tristeza a pairar como um fog fantasma. As lembranças do hospital, seus corredores agora num gradiente de cinza que ia desde o quase branco ao quase negro, como aquele quarto de onde fugiu ao ouvir desesperado seus últimos suspiros. Do corredor, já em transe e daltônico, viu pessoas igualmente graves, sem brilho. A força da gravidade daquele quarto, o buraco negro a tragar tudo, até mesmo os raios de luz daquela manhã quando a mãe veio dizer-lhe que tudo acabara. Adentrou novamente o diâmetro daquele eclipse desvencilhando-se tão rápido quanto pôde logo depois, a fugir da escuridão a cegar-lhe, acinzentada.
Deixou o enterro logo após a descida do caixão naquela cova funda, sob a perspectiva de um mundo em tons infinitos de cinza, a começar pelo cemitério com a grama de um cinza claro, como uma névoa rasteira. Seguiu qual um zumbi mudo, errante.
Pessoas falavam, tocavam seu ombro, mas não era capaz de sentir nada. Duvidou da audição, se ainda ouvia, algo que constatou verdadeiro após ser achacado pela buzina de um carro pedindo passagem na saída do cemitério. O carro cinza claro, três pessoas dentro, cinzas, de cabelos acinzentados. Cinza, claro, suas preocupações imediatas, sua vaidade. Quase negro, cinza escuro seu orgulho. Bobagens num cinza quase branco, errático, fugidias e fugazes agora inteiramente despidas na sua curta extensão e efemeridade. Viu-as todas, arrependendo-se delas.
Era assim que viveria então, sem sentir o perfume das flores - afinal todas teriam o cheiro do crisântemo ou dos cravos, acinzentadas - nem mais entender a cor das manhãs.
Duvidou se sobrara-lhe mesmo o tato, o paladar... mas não tinha fome, e quem gostaria de possuir naquele momento, a única libido que queria de volta, era a vida.
___________________________Figura: triskle.
Tríscele em http://www.templodeavalon.com/modules/smartsection/item.php?itemid=3: símbolo indo-europeu, palavra de origem grega, que literalmente significa "três pernas", e, de fato, este símbolo nos lembra três pernas correndo ou três pontas curvadas, uma referência ao movimento da vida e do universo. Na cultura celta é dedicado à Manannán Mac Lir, o Senhor dos Portais entre os mundos.
Tudo indica que o número três era considerado sagrado pelos celtas, reforçando o conceito da triplicidade e da cosmologia celta de: Submundo, Mundo Intermediário e Mundo Superior.
O triskelion também é conhecido por triskle ou triskele, tríscele, triskel, threefold ou espiral tripla, e possui dois grandes aspectos principais de simbolismo implícitos em sua representação, que são:
- Simbologia ligada ao constante movimento de ir, representando: a ação, o progresso, a evolução, a criação e os ciclos de crescimento.
- Simbologia ligada às representações da triplicidade: Corpo, Mente e Espírito; Passado, Presente e Futuro; Primavera, Verão e Inverno... Os ciclos de transformação.
Tríscele em http://fontesdeluz.blogspot.com.br/2011/04/triskle.html: Triskle é um símbolo celta que representa as tríades da vida em eterno movimento e equilíbrio.
*nascimento, vida e morte
*corpo, mente e espírito
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