sábado, 21 de dezembro de 2013

Cospe ou engole?

Um amigo, cuja veia cômica mereceria mais sorte, tinha mania de abordar alguém da turma com a deliberada intenção de cortar e mudar o assunto, lançando ao interlocutor a pergunta infame:
- você cospe ou engole?
O resto era só riso.

Percival, no artigo abaixo, não está de brincadeira. Mas eu não resisti à analogia. No fundo, pra mim que partilho da definição de livre pensamento do Millôr, o resto é mesmo só boquete ideológico. Pois é disso que se trata.
Vai ai...

A VIDA SEM MENSALÃO
Percival Puggina


Mensalão, você sabe o que é. É aquele crime que levou José Genoíno a demitir-se da presidência nacional do PT em 9 de junho de 2005 e o mesmo crime pelo qual Tarso Genro, ao substituir Genoíno no posto, pediu a "refundação" do partido. É o mesmo crime que conduziu à exoneração de José Dirceu do cargo de ministro-chefe da Casa Civil em 16 de junho de 2005. O mesmo crime pelo qual Lula pediu perdão ao país, em rede nacional, no dia 12 de agosto de 2005. O mesmo crime que, em setembro de 2005, constrangeu centenas de militantes e dirigentes petistas a deixar o partido, filiando-se ao PSOL. O mesmo crime que justificou a cassação do mandato de José Dirceu pela Câmara dos Deputados, em 1º de dezembro de 2005, numa votação secreta, com placar de 293 votos a favor e 192 contra. O mesmo crime que foi reconhecido como existente pelo atual ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, em entrevista à revista Veja, na edição do dia 20 de fevereiro de 2008. O mesmo crime que deu causa à condenação de 25 réus por um plenário do STF onde oito dos onze magistrados foram indicados pelo PT. O Mensalão é o mesmo tipo de crime que os petistas, em uníssono, acusam ter ocorrido anteriormente em Minas Gerais, num governo tucano (o processo está no STF aguardando decisão sobre onde deve ser julgado).

O Mensalão é, também, por fim, aquele crime que as mesmas legiões de petistas, em misto de exaltação cívica e amnésia seletiva, punhos erguidos ao vento, afirmam, agora, que simplesmente não existiu! Gerou uma hecatombe interna, mas não existiu. A gente compreende. É a causa. Ela sempre está em primeiro lugar. Ela ocupa o centro de um altar onde tudo se sacrifica - a verdade, a história, a lógica, o amor próprio. É o velho tema dos fins e dos meios, que todo mundo conhece. Uns cospem fora. Outros engolem sem nenhuma dificuldade.

Durante muitos anos, a disciplina da base do governo vinha sendo mantida com a liberação de emendas parlamentares. Era um mecanismo que funcionava em três tempos: 1º) o congressista apresentava propostas pessoais ao Orçamento da União, dentro de um limite que neste ano ficou em R$ 15 milhões para cada um, destinando os recursos para demandas de suas bases eleitorais; 2º) o Congresso aprovava o Orçamento; 3º) as emendas só eram liberadas, gradualmente, ao longo do exercício, segundo o bom comportamento do seu autor nas votações de interesse do governo. Nesse caso, para que o Mensalão? Ora, o Mensalão foi um adicional, um "por fora", agregado a algumas bancadas, ou a parte delas, para - digamos assim - aumentar o entusiasmo da adesão dos deputados ao governo petista. Congressista feliz com o governo faz o governo feliz.

Tivessem os líderes dos partidos beneficiados com os repasses do Mensalão revelado os nomes dos colegas recebedores, haveria, certamente, mais de uma centena de réus no processo. Os líderes, no entanto, suportaram sozinhos os ônus do criminoso papel desempenhado. Roberto Jefferson, líder do PTB, indagado sobre quem recebera os valores que lhe foram entregues, respondeu que isso ele não revelaria nem amarrado num toco levando chicotada.

E agora? O Congresso Nacional aprovou, há poucos dias, um projeto que torna obrigatória a liberação das emendas apresentadas pelos congressistas, com a condição de que sejam destinadas à saúde pública. É um avanço. Acabou a chantagem do governo sobre os parlamentares através da liberação ou não dos recursos correspondentes às emendas que apresentam. E acabou também o Mensalão, porque dá cadeia. Como fica, então, a negociação do governo com sua base, na ausência de moeda de troca? Como assegurar-se a fidelidade de uma base habituada a negociar periodicamente seu apoio ao governo?

A política nacional desceu a um nível baixíssimo. O presidencialismo multipartidário de cooptação impõe seus rasteiros estratagemas de governabilidade: apoio é coisa que se compra. De momento, o governo tem apenas cargos para oferecer. Isso não basta, os cargos já estão ocupados e não assegura maioria para todas as votações em que sua base deve permanecer unida. Que será que vem por aí? O sistema ficou manietado!
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* Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, membro do grupo Pensar+.

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