segunda-feira, 21 de abril de 2014

Notinhas Cínicas

A maioria de nós persegue desesperadamente justificativas e traços que nos tornem diferentes dos outros, únicos. É uma espécie de compulsão.
Sentimo-nos beijados pela providência como se Deus tivesse escolhido entre as mais de sete bilhões de pessoas do mundo você, sim, você mesmo, com toda a sua falta de graça, propósito, talento, realizações. Afinal, os desígnios de Deus são inescrutáveis, você pontuaria ao final.

Isso é absurdamente comum. Todos os dias vemos depoimentos de inebriados por orgulho ou vaidade catapultando sua própria importância à estratosfera, como que pudéssemos esperar, a partir dali, uma mudança certa no curso da história como consequência do resto de sua existência; Ou tolices vindas de celebridades - ainda mais comum - adoecidas pela fama e exposição, mesmo que sua maior contribuição tenha sido o Xou Da Xuxa, a supressão do plural na linguagem coloquial ou o chicote da Tiazinha.
Na maioria das vezes nada acontece... ou acontecerá por causa disso e o mundo permanecerá do jeito que é e seguirá seu curso natural, por razões óbvias. Mas quase todo mundo quer ser o novo Gandhi, ou Churchill, ou Che, ou Mandela, ou Lenin, fazer a diferença. Uns tem isso em maior grau, outros em menor.

(...)

A autocrítica necessária e o senso das proporções é o que me separa, por exemplo, de Wagner ou de Zé Camargos. Definitivamente não comporei uma Cavalgada das Valquírias nem terei o talento comercial que não adquiri até hoje, aos 47.
Mas autocrítica e senso das proporções parece luxo que não existe mais hoje em dia, tempo dos avatares. Todo mundo é sensível demais, justo demais, altruísta demais, culto demais... Não há feiura nem burrice, só perfeição, ainda que veleidade mais irreal que o socialismo inevitável.

Miseravelmente, a preparação e o conhecimento desses falsos diferentes costuma ser inversamente proporcional à sua megalomania e egolatria. Que o diga Kanye West, ou Lula.

Para muitos de nós, cuja existência está circunscrita ao nosso comezinho jeito de ser, a saída é broadcast nossas causas, lutas e mais o diabo que o parta nas redes. Mesmo que nossa compreensão acerca do que falamos não consiga nem mesmo atravessar a rua. Quem se importa? Uma imagem vale mais que mil ações... da Petrobras. E quem lê não sabe patavina mesmo?!?! e não tá nem ai. É um circo de horrores: avatares celebrando sua dignidade, altruísmo, abnegação, cultura e tudo o mais que efetivamente não têm nem os diferencia de qualquer outro idiota, como eu. Fakes por tras de um nome e uma foto no Face. Afinal é tudo virtual mesmo, fictício, incluindo ai as qualidades das quais se gabam incessantemente. É a chance de construir sua autoimagem ideal.
Por outro lado permite que pessoas não tenham de enfrentar a dura realidade do espelho, deparar com suas inexpressivas e inúteis existências. Se lá atrás acharam-se os escolhidos, diferentes tal como Jobs ou Einstein, Paul McCartney ou Schopenhauer... têm a obrigação agora de provar a que vieram...
E dá-lhe besteira.

(...)

A soberba, sétimo pecado capital, é o preferido do capeta, pelo menos para Al Pacino em o Advogado do Diabo.
Roger Scruton já teorizou como sonhadores inescrupulosos desconsideram a natureza humana para vociferar que podem mudar o mundo. Estabelecer um objetivo nobre desconsiderando irresponsavelmente o choque entre epifania e realidade ou os efeitos colaterais de sua execução é nada mais que demagogia ideológica. A história do século passado nos mostra que via de regra essa obsessão sempre termina em cerceamento das liberdades e morticínio.

(...)

Alex Fleming e a penicilina mudaram o mundo. O computador e a Internet mudaram o mundo, tanto quanto os foguetes V-2. Gutenberg mudou o mundo. Henry Ford mudou o mundo.

Eu cá sou infinitamente mais modesto. Tento acreditar apenas ser um canalha a menos na face da terra. Servir minha família já é a missão da minha vida e considero-a tão nobre quanto o Teorema de Pitágoras. Afinal, sei que Pitágoras não sou e entre o teorema e os meus, adeus matemática. É bom ter ciência de sua insignificância.

(...)

[O cinismo foi uma corrente filosófica fundada por um discípulo de Sócrates chamado Antístenes, cujo maior nome foi Diógenes de Sínope, por volta de 400 a.C., que pregava essencialmente o desapego aos bens materiais e externos. O termo passou à posteridade como caraterização pejorativa de pessoas sem pudor, indiferentes ao sofrimento alheio (que em nada se assemelha a origem filosófica da palavra).
Esta atitude era parte de uma procura da independência pessoal. Alguns foram longe demais, rejeitando mesmo as decências básicas. Para poderem manter a compostura face à adversidade, reduziam as suas necessidades ao mínimo para garantir a sua autossuficiência. Mais do que uma teoria, era um modo de vida.1 Para os Cínicos, a vida virtuosa consiste na independência, obtida através do domínio de desejos e necessidades, para encorajar as pessoas a renunciarem aos desejos criados pela civilização e pelas convenções. Os cínicos empreenderam uma cruzada de escárnio anti-social, na esperança de mostrar, pelo seu próprio exemplo, as frivolidades da vida social.2 ]

Queria mesmo era ver os avatares realizando seu palavrório, como Diógenes nas ruas de Atenas. 
Menos imagem e mais atitude. 
Menos Internet e mais filósofos em barris pela rua.
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Figura: Diógenes, de John William Waterhouse

Texto entre colchetes[ ] acima retirado da Wikipédia com as referências abaixo:
  1. Ir para cimaDicionário de Filosofia coordenado por Thomas Mautner. Editora 70, 2010
  2. Ir para cimaSimon Blackburn, Dicionário de Filosofia. Gradiva, 1997

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