Ando falando do passado com muita frequência. Nas conversas enviesadas na cozinha enquanto Margô prepara algo, na sala em frente à TV atrapalhando a programação, na sala de estar com a prosa já contaminada pela música, saudade, cervejas... invariavelmente, minha parceira vê-se encurralada pelos cacos - agora recorrentes - de minhas lembranças. Memórias do Bairro Betânia, do Recanto Motinha, das férias no Vale, da BH da minha infância e juventude, tudo vindo à baila “junto e misturado” como flashes do big bang empilhando takes em minha retina. Coitada da Margô... Outro dia, relembrando as epopéias do bairro (tudo parece gigante, grandioso quando se tem 13 ou 14 anos) contei todos os amigos, restaurando todos em suas casas como num filme de família gravado em super 8 onde ainda se notam os cortes nos frames a cada tranco do projetor ameaçando engripar. Foram anos que ficaram congelados em meu hipocampo, e ainda que a velocidade do projetor mental siga errante, mais rápida ou por vezes lenta, as imagens dançam agora ao som do YES, Jimmy, Doors, Stevie Ray, Janis, Aldir, o Clube, Bosco, Guinga, Egberto, Rush, Beatles, Wakeman, Rosa, Toninho, ELP... por entre cervejas, um charuto... dois.
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Comecei a fumar depois dos 50...
E perco-me de novo em lucubrações com o olhar no vazio.
Puxo então Page and Plant e ouço Unledded... pra logo depois pesquisar no Youtube as ‘Alucinações de Sergei’ em seu single de 1966, ano em que nasci.
Sergei morreu ano passado. Nunca foi nem mesmo ínfima referência musical, diga-se de passagem, mas fez parte do Rock’n’roll nacional cuja história omite hoje curiosidades como a que o nome dos Mutantes foi sugerido pelo Ronnie Von.
Mas antes dele já haviam ido Jimmy, Jim, Janis, Bonham, John, SRV, George, Keith, Greg Lake, Chris Squire. Depois Neil Peart, Aldir, tantos... esses sim eternizados pela obra.
Percebo então que já nasci com um algoritmo de busca a la Google na cabeça muito antes de Larry Page e Sergei Brin inventarem o buscador mais famoso da Internet (chupaaaaaa AI).
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Me ocorre depois que para alguns o rock começou com o Whitesnake. Azar do Bill Haley, Chuck Berry e tutti quanti que talvez só tenham existido mesmo pra quem tem mais de 70. É uma tese.
Não questiono a curvatura da terra nem se o homem pisou na lua mas dessa ai não comungo, é fake... sorry.
Eu sei, cada geração tempera suas verdades com o que viu e ouviu mas isso não significa contestar o passado sem antes pesquisá-lo.
Nossa história escrita tem pelo menos 5020 anos. Seria como julgá-los usando menos de 2% dos dados, menos de 100 anos, por uma expectativa de vida otimista.
Quanto a mim, teimoso e atávico que sou, valorizo mais a brilhantina dos anos 50, a psicodelia dos 60, o vortex do rock e o glam de Ziggy Stardust nos 70 ao glitter metal e baladareiro dos 80 MTV. Questão de opinião. Nos 80 já estava mais a mirar o passado, como se tivesse perdido o trem e nascido na geração errada, atrasado, bored.
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A morte de ídolos potencializa a nostalgia e balbucio uma frase do Aldir por entre os dentes antes de outro gole na cerveja : “meu caderno de telefones é um cemitério”.
Retomo o curso da memória desviada por devaneios e revejo de novo todos os patrícios daquele universo que englobava meras duas ruas do Betânia: a Dois e Quatro...
De estalo lembro-me também do Cícero, um gênio matemático que conheci no finado Colégio Anchieta. Acho-o na net, escrevo-lhe um vexatório - porque emotivo - bilhete via e-mail. Amo todos agora...
Engraçacado. Ponho In My Life dos Beatles e a letra me iguala a John e Paul por pelo menos dois minutos.
Não tenho mais medo dos brigões do Conjunto B, do bullying que sofria quando estava vestido de escoteiro com a bermuda azul marinho e o Kichute amarrado na canela, das pendengas geradas pela rivalidade no ‘bente altas’, tudo volta com um tom de saudade... “some forever not for better”.
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Minha misantropia mineira - ou mineirice misantrópica - e a pandemia agravaram o quadro para além da famosa crise da meia idade. Aliás, o Dr Elliot Jaques foi quem cunhou esse termo em 1965, mas só aceitei a teoria depois de sentir na pele a tal crise por volta de 2013. Quando reneguei o juizo leviano que fiz da teoria (achava frescura), adicionei mais um ao rosario de erros de julgamento que cometi na vida. Importante que agora até acredito no Dr Elliot.
É... Envelhecer é mesmo perigoso. Ponho Erasmo na JBL e seu “É preciso dar um jeito meu amigo”, a despeito do que acha o fake. É rock, concluo aliviado. Já a cobra branca... arrrrghhhhh!